terça-feira, 10 de agosto de 2010

Máquina do tempo

No fim dos anos 80 do século passado, quem não tinha carro só saía do Fundão de carona. Bom, tinha quem saísse de 634, também chamado de volta do mundo, mas prá chegar em 50 minutos na Praia Vermelha (no Campus Pinel, como a gente dizia naquela época sem culpa), na Lagoa ou na Tijuca, a saída era só a carona. E como o povo da Engenharia, geralmente do sexo masculino, ia comer no nosso bandejão (não que o nosso fosse melhor que o deles), o da Letras, geralmente do sexo feminino, cruzava as pistas no sentido contrário para pegar carona na saída do megaprédio deles.

Tanto quanto a carona, o papinho entre motoristas e caroneiros era uma instituição, e geralmente rolava um choque cultural entre as moças da Letras e os meninos da Engenharia. Não era à toa que cada escola ficava de um lado da rua: nossos mundos eram em galáxias diferentes.

Uma vez unzinho me perguntou por que eu estava na Letras e o que pretendia fazer no futuro (ele queria saber como eu ia pagar minhas contas). Bem, eu gostava de ler e escrever, adorava minhas professoras de inglês, mas, como não soubesse responder à dúvida implícita, disse que talvez viesse a trabalhar com tradução ou algo assim. Ele, que já sabia como seria o futuro, respondeu rindo que dali a algum tempo não iam existir mais tradutores, porque máquinas programadas prá converter textos entre todas as línguas (e mais as que fossem inventadas) iriam assumir esse tipo de trabalho.

Respondi singelamente (como a gente é singela quando está de carona!) que achava difícil que máquinas viessem a ter a habilidade de compreensão (prá traduzir não é preciso entender o que está escrito?), porque colocar as palavras em fila não cria um texto. Ele pareceu não se convencer e seguimos nosso trajeto, na Brasil e na vida.

Mais de vinte anos e muitos quilômetros rodados e voados depois, rio quando leio o que andam prometendo por aí: traduções automáticas, eliminação de custos com tradução, enfim, a velha ideia do robô está mais viva do que nunca.

Mas com o tradutor do Google, “reconhecido como o melhor entre os sistemas comerciais”, segundo David Yarowsky, professor de ciência da computação da Johns Hopkins citado naquela matéria da Veja (http://veja.abril.com.br/050510/lingua-google-p-122.shtml), uma informação simples como a de que “40 partidos estão inscritos para participar da eleição” (em Myanmar, conforme matéria do NY Times de hoje) vira “40 partidos se registraram para ser executado", o que sugere que os candidatos vão encarar um grande paredon.

Como participante das várias etapas de projetos de tradução de máquina (a maioria feita por profissionais de tradução de carne e osso), minha vontade é de exclamar: fala sério!

Isso porque a vantagem financeira da tecnologia para os desenvolvedores, por enquanto, é de origem exclusivamente psicomercadológica (ou perversocapitalista): a derrubada das taxas de tradutores que temem ficar sem trabalho.

Só pra dar uma ideia: com todo o investimento, toda a tecnologia e todos os esforços, a máquina de tradução ainda está mais ou menos no estágio de desenvolvimento da máquina do tempo do clássico de H. G. Wells.

ps: essa é minha resposta ao convite feito pela Maíra Monteiro, que levantou belamente o assunto na postagem dela dessa semana (O mito da tradução automática na Veja) no blog da LocHouse.