domingo, 12 de setembro de 2010

Caetano mira a ênclise e quase acerta a próclise

Quem me conhece sabe que não sou de livrar a cara de tradutor sem noção ─ muito pelo contrário ─ embora a falta de noção não seja coisa só de tradutor. Mas vou ter que dizer que ênclises estranhas não são exclusividade dos tradutores. Todo dia (isso, eu não descanso!) vejo por aí um monte de ênclises esquisitas, nos jornais, nos sites moderninhos, nas campanhas de marketeiros fashion, nas sentenças judiciais de supostos eruditos, etc.

Durante os 8 anos em que tive uns 500 alunos de graduação por semestre, comprovei a hipótese de que as pessoas fazem ênclises medonhas porque foram doutrinadas a abominar as próclises. O horror, o horror! do professor secundário (absolvamos o primário) não era o analfabetismo, eram as próclises. Em turmas graduadas já tive que ler citações de nomes célebres do século 19 (lusitanos e brasileiros), na tentativa de convencer os candidatos a magistrados ─ uma elite que concluiu o curso de Direito e pode se dedicar a estudar para a magistratura estadual ─ de que a “próclise facultativa" não é crime gramatical, mas antes perfeição do Português do Brasil que, embora alguns ignorem, é a nossa língua.

Mas se a próclise é facultativa em todos os casos (menos em início de oração e, mesmo assim, só na escrita formal culta), por que se multiplicam ênclises abomináveis? Não vejo outro motivo ao não ser o fato de que, quando mencionavam a "próclise facultativa", nossos professores sugeriam que estavam gentilmente nos dando uma autorização para errar a nosso próprio risco, já que a preferência do português lusitano seria a ênclise, o que é só um quinto da verdade, já que há todos aqueles casos em que até os portugas da aldeia ─ como o meu avô que pouco conheci ─ a fazem naturalmente, como em “quando-se trata, como-se viu, que-se sabe, hoje-se diz, não-me conta, embora-se diga, tanto-se fala, isso-lhe apraz, etc (claro que os hifens aqui indicam a tonicidade, não a regra da escrita).

E que poder absurdo era esse o dos professores que, embora muitas vezes não conseguissem que muitos alunos lessem um só livro, conseguiam incutir em tantas mentes tamanho medo da próclise? Só o totalitarismo explica.

Assim, se com os futuros a ênclise não pode ser (nem em Portugal, nem no Brasil, nem na caixa-prego) e a próclise é um monstro abominável, a alternativa seria a mesóclise, que ressurge das cinzas na coluna de hoje de Caetano, embora o compositor sugira, de passagem, que a ênclise seja uma possibilidade. Diz ele:

"Mas os italianos – dos poucos ocidentais a não fazerem o plural com ‘s’ que, suponho, veio do acusativo romano – espantar-se-iam com o fato de uma palavra que já tem dois esses (...) os italianos, dizia, achariam absurdo fazer um plural com 's' numa palavra já com esses demais".

Mas por que não escrever “os italianos se espantariam”, tipo língua de gente? Talvez porque haja um travessão ali, antes do qual vem o sujeito, e saberão os deuses (será?) que regra pode haver condenando a próclise nessas situações!

Como os casos de próclise obrigatória (por motivos de tonicidade lusitana e também brasileira) são muitos (que falante saudável decora aquela lista de conjunções subordinativas e integrantes, pronomes relativos, demonstrativos, alguns advérbios, etc?) e os casos de próclise facultativa são todos, costumo fazer e recomendar o seguinte: na dúvida, vá de próclise (exceto em início de oração), que não há chance de erro.

Uma vez escrevi isso num manual de estilo para tradutores, mas minha chefe na época achou esquisito e mandou tirar. Numa outra vez, um aluno da escola da magistratura me perguntou surpreso: mas por que nunca ninguém me disse isso? Respondi que parece que tem muita coisa que não contam.

Em tempo: se você é tradutor, recomendo cautela ao usar a próclise para não ganhar um fail. Os avaliadores devem ter sido ótimos alunos, porque costumam ter ódio à próclise.

Em tempo2: Caetano já fez bastante de levantar a questão, resta que os escrevedores façam o dever de casa.